quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Minha primeira cirurgia.

Eu NÃO nasci de pai médico, nenhum parente próximo meu é médico. Então não tive favorecimentos familiares para conhecer a rotina interna de um hospital. Muitos que estudam comigo e cursam o primeiro ano na faculdade de Ciências Médicas de Alfenas, se gabam de já terem ajudado, por exemplo, a mamãe cardiologista ou papai obstetra em alguma cirurgia. Nesse mundo – realmente - quem alcança algum fio do rabo do gato é sempre quem tem contato ou quem tem esperteza e bedelhudeza.

Esperta e bedelhuda eu sou. Contato eu ando fazendo. Desconsidero médico mal educado e às vezes até encho a bola deles. Mas nem meu cabelo longo castanho escuro e nem meus olhos combinantes, também castanhos escuros, têm ajudado muito. Essa simpatia transparente da minha pessoa (Hehe) e a eximia aptidão para fazer a carinha do gato de botas do Sherek, não funcionam quando descobrem que quem está pedindo para assistir uma cirurgia é uma reles aluna do primeiro ano. Uma aluna que não tem conhecimento nenhum de práticas cirúrgicas. Que não tem conhecimento nem mesmo da forma correta de se vestir para entrar no bloco cirúrgico de um hospital.

Eu já tentei várias formas de entrar no HUAV (Hospital Universitário Alzira Vellano). A intenção era conseguir ver alguma coisa interessante no meio da agonia geral que domina os 3 primeiros anos do curso de Medicina. Nessa fase, estudantes estão limitados só a um monte de livrinhos grossinhos.

A primeira tentativa de adentrar no hospital ocorreu quando aproveitei de um trabalho da disciplina de Metodologia Científica. Criei a desculpa de que era necessário entrevistar alunos do quarto, quinto e sexto ano. Esses são encontrados nos seus estágios dentro do hospital. Belezura total! Cheguei nos corredores do Alzira, mas as portas das salinhas de lá de dentro estavam todas fechadas.

A segunda tentativa para ver coisas sanguinolentas no Hospital, era entrar para a Liga de Angiologia. Uma vez na vida e outra na morte, a Liga cede a cada membro a oportunidade de assistir a um plantão do Doutor João Batista. Um cirurgião famoso aqui da faculdade. Passei na prova da Angioliga. Felicíssima, o meu plantão seria dia 25 de setembro. Para atrapalhar tudo, final de agosto todos os plantões da Liga tinham sido cancelados por causa de casos da Gripe Suína no hospital.

Depois dessas frustrações, comecei a confabular estratégias assim meio cinematográficas, como entrar no lixo da faxineira que limpa o bloco cirúrgico. Digo ‘cinematográficas’, mas a possibilidade existe mesmo porque os lixos são bem grandões. Antes de cometer qualquer loucura, eis que me aparece um anjo todo de branquinho que é legal e já se tornou meu amigo. É ele Deodato Rubens, um acadêmico do 4° ano que já conhece um pouco da grande cidade que é o Hospital Alzira Vellano.

Mariana: Deodato, me leva com você para ver alguma coisa?
Deodato: Que alguma coisa?
Mariana: Alguma coisa que tenha muito sangue!

Ele entendeu o meu ‘muito sangue’ e – enfim – me colocou dentro de um bloco cirúrgico. Narro agora para você a experiência da minha primeira cirurgia. Não a primeira cirurgia que eu fiz, é claro, mas a primeira que assisti.
Eu combinei com o Deodato três e meia da tarde de ontem na porta do pronto socorro. Ele atrasou e eu cheguei mais cedo aflita com a possibilidade de estar perdendo alguma coisa que já estivesse na mira de um bisturi. Quando ele chegou, a gente entrou pela porta atrás da recepção sem nem comunicar ninguém. Nós estávamos vestidos de branco e eu ainda estava com o jaleco no ombro. Como assim era só abrir a porta e entrar? O Deodato parecia estar muito íntimo com o lugar.

Então, estando nos corredores - já familiares à minha pessoa - eu não vi a hora de ver uma daquelas salinhas de atendimento se abrirem para mim. O Deodato me apresentou alguns ambulatórios, mas esclarecendo para vocês leitores que são leigos no assunto, ambulatório é um lugar onde pacientes sem grande quantidade de sangue são atendidos. E eu queria sangue!

Mariana: Deodato onde é o bloco cirúrgico?
Deodato: Calma menina!
Mariana: Ah não Deodato! Cadê? E vai dar para ver alguma coisa? Tem cirurgia toda hora? E se não tiver cirurgia? Você conhece os professores (todos os médicos do HUAV são - por conseqüência - professores) que estão de plantão? E se eles não deixarem eu ver nada? Deodato! E se eu desmaiar você me acode? Deodato vamos logo!

O Deodato é calminho. Ele nem se altera muito com a minha euforia. A gente anda por um corredor, sobe outro, vira a esquerda e depois a direita. Aquele lugar é um labirinto. Passa segundo, passa minutos... o meu amigo pára de frente a uma porta. A placa acima dela avisava que estava perto de conseguir o que queria: “Bloco cirúrgico. Entrada restrita”.

O Deodato passa as primeiras instruções:
_ Olha! Você vai entrar nessa porta que é o vestiário feminino e eu vou entrar naquela outra para me trocar também. Tem umas roupas verdes dobradas nos armários e são estas que estão limpas. Você vai me encontrar depois que sair pela portinha do outro lado do vestiário. E ah! Me espera! Não ultrapasse a linha vermelha!

Não entendi a coisa da ‘Linha vermelha’ mas gravei as instruções. Entrei e que emoção! Eu estava vestindo roupinhas verdinhas de fazer cirurgia! Realmente haviam roupas bagunçadas e roupas dobradas. Peguei uma blusa e uma calça devidamente dobradas como dizia a instrução. Fui rápida e sai bem rápido, deixando jaleco e pertences num armarinho lá do vestiário mesmo. O Deodato demorou um pouco e enfim saiu de uma outra porta que dava para o mesmo lugar em que eu estava. Ele me olhou dos pés a cabeça e falou assim:

_ Minha filha! Você tem que tirar a roupa de baixo.
Que indecência! Eu pensei. Depois retruquei:
_ Debaixo tudo? Eu fiquei em dúvida oras!
_ Calcinha e sutiã você deixa!

Que manota! Volto para vestiário para me trocar toda de novo! E... haha, dessa vez eu lembrei de olhar no espelho. Modéstia a parte, eu fiquei muito sexy naquela calçolona verde e naquele camisão verde! Nunca me senti tão poderosa! Sai na porta de novo e dessa vez o Deodato aprovou. Ele me mostrou a linha vermelha no chão, que limitava a passagem do recinto que estávamos para o corredor cirúrgico. Antes de ultrapassar a linha vermelha, faltavam mais alguns detalhes para serem ajeitados no corpo: touca para conter os cabelos, 2 toucas para proteger os pés e máscara. Ai que chique!

O Deodato pergunta se tá tudo pronto e eu respondo que tá tudo mais do que pronto. Pé direito, passo a linha vermelha e... Tcharam! Estou no bloco cirúrgico. =)

Todo mundo ali estava igualsinho a mim e praticamente irreconhecível por causa da máscara. Ninguém identificaria a aluna do primeiro ano.

O bloco cirúrgico é cheio de salinhas e em cada uma acontece uma cirurgia diferente. As portas das salas estão semi-abertas e naquele ponto a única coisa a se fazer era pedir permissão para acompanhar algum procedimento que já estava ocorrendo. A gente - eu e o Deodato - conseguiu entrar em 3 salas. Eu vi 3 cirurgias num dia só! Os órgãos operados foram uma parótida (no pescoço), palato (céu da boca) e a mais interessante e sanguinolenta de todas: Uma fratura em muitos pedacinhos do fêmur (coxa).

As duas primeiras cirurgias não tinham muito sangue. Eram cortes pequenos e não dava para ver muito bem, pois o cirurgião trabalhava bem em cima do local. Já a do fêmur foi simplesmente o máximo! Sangue para todo lado! No chão, nos panos, nos milhares de instrumentos que estavam numa mesa de quase dois metros. O Deodato lembra de me passar as últimas instruções:

_ Não desmaie e não esbarre na mesa de instrumentos!

Eram instruções um pouco óbvias, mas para uma pessoa estabanada - feito eu - essas considerações eram extremamente úteis (principalmente a de não desmaiar). Eu não desmaiei, mas saí da sala umas cinco vezes suando frio.

Eu estava num açougue! Uma bitela de uma coxa estava na cama de cirurgia e um médico - compenetrado - fazia cortes, sugava o sangue do local, usava uma furadeira mesmo nos ossos! Ortopedia é marcenaria com açougue. Até um instrumento tipo martelo ele usava. Na mesa de instrumentos tinham brocas de vários tipos para a furadeira. Haviam ainda afastadores, tesourinhas de muitos tipos, pinças, espátulas, agulhas e coisas muito estranhas mesmo. Não dá para descrever. Na lateral da coxa direita que estava sendo operada no homem havia um corte de fora a fora. Esse corte é feito na cirurgia e a gente o chama de fasciotomia. Serve para romper a membrana que envolve o músculo deixando-o frouxo e livre das compressões necessárias para o acesso ao osso fêmur. Desse corte estava protuso um grande bife: o músculo Vasto Lateral! (Aham! Eu sei Anatomia! Kkk) Dessa carne vermelha brotava muito sangue! E o sangue vermelhinho recebia aquela luz branca e sinistra da sala que ilumina o local operado e quase toda a mesa cirúrgica. Atrás da cabeça do paciente, uma tela monitora os seus sinais vitais. Aparecem as linhas dos batimentos do coração, mas não reparei se havia algum barulhinho de ‘bip’ indicando normalidade do órgão. Uma bolsa de sangue pinga vagarosamente o sangue que vai repor a quantidade perdida na cirurgia. Também existe uma câmara com uma sanfona circular que parece produzir um ar, talvez de controle da respiração do paciente. Eu olho para a cabeça do homem sendo operado e, claro, ele está apagadão. O ortopedista pega mais um bisturi e abre mais um pouco a incisão. Eu aviso o Deodato: To passando mal! A gente sai da sala e eu sento num banquinho milagroso que aparece de repente. Abaixo a cabeça e chupo uma balinha que também apareceu milagrosamente. =)

Depois eu voltei. Entrei e saí da sala de novo ainda por muitas vezes. Era só eu me concentrar no cheiro de sangue que a coisa piorava.

A cirurgia deve ter durado umas 4 horas, mas não a acompanhei toda. Estava bom por aquele dia. A valia de tudo foi que eu resolvi a minha vida: Vou ser cirurgiã. De alguma coisa, mas eu vou ser. O Deodato me abriu as portas daquele hospital e agora eu vou entrar na cara dura toda hora que me sobrar um tempinho. Eles vão ter que engolir aquela que - um dia - será uma das maiores cirurgiãs (de alguma coisa) que esse país vai conhecer. Hihi

sábado, 3 de outubro de 2009

A tchaca tchaca tchaca tchaca... Ôôoooo!

Essa foto eu desafio o Ailton a tirar uma igual. Hehe

O normal de se ensinar para uma criança de um ano imitar é som de boisinho (béee!), cachorro, gato ou qualquer outro animal que seja do seu convívio. Não fugindo a regra, eu - com certeza – também devo ter passado por essa fase de engrandecimento liguístico que é aprender falar “au, au” e “miau”. No entanto, na minha infância, tive a figura criativa da vovó Bina para incrementar esse treinamento de onomatopéias. Ela me ensinou a imitar cigarras.

As instruções eram mais ou menos as seguintes:
- Mariana! Encha o pulmão de ar e fala: ‘A tchaca, tchaca, tchaca, tchaca’. Depois, até quando o fôlego não agüentar mais, você vai gritar: ‘Ôôoooooooooooooo...!’. E grita bem fininho.
Acho que eu nem sabia direito o que era uma cigarra, mas mesmo assim me empenhei para imitar uma. A vovó me inspirava quando fazia com perfeição aquele som engraçado. O final ‘Ôôoooooooooooooo...!” dela era como daquelas cancionistas mais velhas de festa de Reinado. Fininho, esganiçado e longo, o som – assim como o de uma cigarra – incomodava, mas era ao mesmo tempo simples e aconchegante aos ouvidos. Sério! Eu sentia prazer em ver dona Bina se esgoelando para imitar uma cigarra para mim.

Eu lembrei disso esses dias, porque Alfenas (MG) - esse mês - está totalmente invadida pelas bichinhas. Ninguém as desliga. As cigarras cantam de 7 da manhã de um dia às sete da manhã do outro dia. Na minha teoria nem é um canto, mas uma zombação da gente que passa todo ocupado de um lado para o outro o dia inteiro. Essa semana, eu estive feito uma formiguinha - para lá e para cá - resolvendo um monte de coisas e fazendo um monte de provas. Elas simplesmente pareciam aumentar a cantoria quando eu, ou alguém na mesma correria, passava. Se não conseguiam chamar a atenção, cigarras lançavam uma aguinha nojenta sobre as pessoas. E continuavam cantando, na verdade, acho que morrendo de rir por acertar a gente.

Mas e a aguinha? O que era? Alguma frutinha que ela apertava e saia água? Epa! A árvore não tinha frutinhas aquosas. Ugh! Seria xixi de cigarra? Meu Deus, que nojo! Mas antes fosse isso gente! Como desagradavelmente uma amiga conhecedora de cigarras me esclareceu, ela lança é esperma sobre a gente!
Jesus apaga a luz! Será que um cigarrão me veria lá de cima das árvores como uma cigarrona boazuda? Quanta taradesa! o.O

Bom, eu só não tinha conhecimento da metralhadora de espermas, mas cigarras - como eu já contei para vocês - me foram apresentadas quando bem pequenininha. Poucos têm avós com criatividade anormal ou nascem em uma cidade com um mínimo de verde para vir a conhecer cigarras. E fui descobrir isso quando uma garota de São Paulo-capital soltou algo assim: _ Que barulho é esse? Essa máquina vai atrapalhar as aulas!

Todo mundo aqui anestesia os ouvidos para não ficar surtado. A Faculdade de Ciências Médicas de Alfenas, que é muito arborizada, tem muitas cigarras, mas muitas mesmo! E elas realmente conseguem atrapalhar as aulas. Quando todo mundo está em silêncio, nem o barulho do ventilador tem ponderância mais.

Quarta eu fui arejar a cabeça perto da lagoa e do prédio da veterinária. Andando por lá, encontrei muitas cigarras em troncos bem baixos, próximas da altura dos olhos. Eram filhotinhos de cigarra, cigarras velhas, cigarrões tarados e – impressionantemente - casquinhas de cigarras de todo tipo! A cigarra se liberta de um esqueleto externo que grava exatamente sua forma sem asinhas. Pensei na vovó. Ela teria gostado de ver aquilo. Talvez, do céu, ela observasse ou me guiasse àquele lugar. Para mim, a partir daquele momento, vovó era uma cigarrinha que havia se libertado de sua casca material para cantar no meio das árvores.