sábado, 18 de abril de 2009

Vejo um cadáver em você!


Não faz tanto tempo assim que morria de medo de velório. Sério mesmo! Quando eu era piquititinha então, nussa senhora! Passava bem longe. Tudo por causa da minha vó Bina que era uma doida varrida e contava umas histórias cabeludas da origem dos brincos de coco e ouro que ela negociava. Eu explico isso direito. É que a minha falecida vovozinha tinha um hábito estranho de presentear todas as mulheres da família com um brinco antigo de ouro com cabacinha de coco. Ele era igualsinho para todas as suas filhas e para todas as suas netas. A vovó conseguia esses brincos comprando de senhoras velhas que viviam na roça - antigas colegas ou conhecidas dela - que também pareciam cultivar a tradição do brinco. O meu eu ganhei com uns 5 anos, mais ou menos. Mas eu me lembro suficientemente bem da Dona Bina contar que ele foi negociado durante um velório em que a jóia se encontrava na orelha do defunto: uma meninha de uns oito anos. A vó inventou uma história de que no céu a gente entrava pelado e quem usava brinco ou qualquer jóia, mostrava que era gente rica e por isso devia ficar no final da fila dos candidatos ao reino de Deus. Pelo menos tal discurso convenceu a mãe da menina morta a enterrá-la sem brinco. Depois, com mais um pouco de lábia, vovó teria convencido a mulher a lhe vender o tal brinco. Por fim, lá estavam um monte de mãos de adultos nas minhas orelhas tentando colocar dois pedaços brilhantes e coçantes em mim. Como se eu fosse um boizinho precisando ser marcado com um traço familiar identificável.

O pior de tudo isso é que eu cresci até meus 11 anos, mais ou menos, sem poder usar qualquer outro brinco. Falavam que eu tinha alergia a bijuteria, entre outras desculpas. Por aproximadamente uns seis anos de vida – dos cinco aos onze anos - eu carreguei a culpa absurda de usar o acessório de um defunto. Acabou que esse acontecimento foi um agravante desencadeador de uma crise exagerada de repulsa por gente morta.

Até três anos atrás, eu tinha ido apenas a único velório: o do meu avô, pai de mamãe. E lembro que fiquei quietinha num canto bem distante do caixão. Assentada num sofá verde escuro, ainda lembro da minha mãe debruçada sobre as mãos gélidas do vovô. Eu achava um absurdo aquele contato com gente morta. Nojento? Talvez. Resquício do efeito ‘brinco de defunto’? Talvez. Havia também um receio de enxergar aquilo que sobra de alguém depois que não existe mais a vida. E de fato, evitei a mão de minha mãe por um mês depois daquele dia.

O tempo foi passando. Muita gente nasceu, muita gente morreu. Eu fui a mais alguns velórios, mas sempre evitando a cara do defunto. A vó Bina continuava com suas histórias malucas. Ela contou, uma vez, de um homem que eles achavam estar morto e que quase no momento de fechar a tampa do caixão, ela percebeu que ele estava respirando. Desde então, vovó inventava uma fadiga para com o véu que cobria o defunto e usava isso como desculpa para levantar essa cobertura e averiguar a respiração do morto. Fadiga era o que me dava quando ouvia essas coisas, isso sim.

Eu cresço mais um pouquinho, mais gente morre e eu entro na faculdade de Biologia. Achando que iria estudar plantas, animais e células, começo a ver pedacinhos de gente na matéria de Anatomia. Os cadáveres inteirinhos ficavam numa outra sala ligada por um corredor pequeno que distanciava os estudantes de biologia dos de enfermagem e fisioterapia. Alguns pedaços tinham semelhança com porco. Tocar nesses, mesmo munida de luvas de látex, dava uma sensação até que familiar. Tudo se assemelhava as estruturas das porcas que o vovô - pai do papai - matava lá na fazenda. Eu corria para salvar o coração da lata de carne destinada a fazer picadinho. Tudo para abrir e confirmar a existência das válvulas bicúspide e tricúspide que a gente estudava em biologia na escola.

Porco é porco e pedaço de gente que parece com porco, a gente disfarçava que também era de porco e conseguia estudar. Só que de repente, numa aula, apareceu um braço de gente em cima da bacia metálica na mesa de estudo dos alunos da biologia. Aquilo não parecia nada, nada com porco e tinha unhas! E não só unhas, rugas típicas de mão humana, dedo indicador e polegar - que em vida - podiam fazer movimento de pinça. Só humano faz ligação de polegar com indicador (Livro: 'O Polegar do Panda'). Aquele braço, definitivamente não era de um macaco, apesar de ser cabeludo. Começavam a surgir respostas para a dúvida que eu tanto evitei saber: ‘O que sobrava de alguém depois da vida?’. Nesse dia, eu já sabia responder parcialmente. Sobrava uma mão dura, sem ternura nenhuma, seca e sem cheiro bom.

O choque maior eu tive quando estudei a cabeça. Logo depois veio o contato com os cadáveres inteiros, uma junção dos pedacinhos de porco com braços, pernas e cabeça. Mas era justamente essa última que me trazia para o limite mínimo do que é vida e morte. É pela cabeça que você identifica uma pessoa. Já não observaram em depoimentos na televisão, que a pessoa quando não quer ser identificada recebe uma tarja para esconder a face? Então. O cadáver não recebe tarja nenhuma e você consegue identificar feições nele. Um dia aquela pessoa ali sorriu, amou alguém, chorou. Naquele momento sem vida ele era exatamente como qualquer um dos meus coleguinhas de sala. Mas em posição estática, com músculos relaxados. Por um instante, vi um cadáver em cada um deles e nada mais.

Hoje, estudando Medicina, passo umas oito horas por semana vasculhando cantinhos do corpo humano no Centro Anatômico. Já não tenho nojo do que vejo. Vez ou outra, até sem luva mesmo, arrisco cutucar alguma estrutura ou outra que não esteja encharcada de formol. As minhas reflexões sobre o que é vida e morte acontecem silenciosas quando estudo algum deles. São 27 diferentes cadáveres na faculdade. Esses dias para traz, estudei Sistema Circulatório em uma jovem que podia ter exatamente a minha idade. Cada dia tenho menos sensibilidade de ver vidas anteriores nesses cadáveres. O curso molda um monstro em mim e ao invés de ver vida em cadáveres eu vejo cadáveres em seres vivos.

Tudo se tornou uma nóia séria quando a Vó Bina morreu. Foi no segundo semestre do ano passado. Eu vi e toquei o rosto dela. Quis muito que ela voltasse a respirar até o último momento em que puseram a tampa do caixão dela. A única coisa para constatar que ela estava morta era ausência de ar e sangue corador. Do contrário, o cadáver era o mesmo corpo vivo. A partir daí, a resposta para ‘O que sobrava de alguém depois da vida?’ não encontrei mais no corpo de ninguém. Com certeza sobrava algo mais do que o mesmo corpo de vida.

Hoje eu olho um pé vivo e vejo veinhas, arteriasinhas, ossos do tarso, metatarso, falanges, bainhas tendíneas, músculo extensor. Olho uma barriga de bêbado e vejo um fígado bem posicionadinho e detonado. Olho a face de uma modelo e vejo um zigomático bem delineado, uma cartilagem nasal pontudinha, uma caveira com parietais achatados. É locura eu sei! Vou procurar o psicólogo da faculdade logo, logo. Porque isso tende a prejudicar até a minha vida afetiva/reprodutiva. Imagina ver um pênis e imaginar espermatozóides percorrendo o epidídimo, depois o ducto deferente, o ducto ejaculatório, ureta. Ai, ai! Como diria o Felipe: ”Algo deveras brochante!”. Assim a linhagem Martins Ferreira estaria totalmente comprometida, coisa que a vovó não iria querer jamais. Na verdade, o que ela sempre quis - inconscientemente - foi que eu evitasse coisas complexas como lidar com a morte de perto. Eu devia ter usado aquele brinco por mais tempo. Era como se esse objeto fosse uma cela que me prendesse ao medo de conhecer aquilo que sobra de um corpo tão sem super poderes.

6 comentários:

Luciano Oliveira disse...

Agora sim eu tenho a certeza que nunca vou ser medico... eu tenho horrar a sangue, e cadaver, eu até hoje nunca assisti nenhum dos "Jogos Mortais", o melhor filme de terror que já assisti foi "Premonissão"... e é melhor sim, vc ir a um psicologo, e tomora que todos os estudantes de medicina não sejam assim...

.ailton. disse...

"dias após dia, cada vez mais fria.
você matou sua mãe pra estudar anatomia".

Felipe lacerda disse...

Nossa... Estou realmente orgulho de ter meu nome citado num texto tao sincero e interessante. mariana do meu coraçao, pára com isso menina. Volte a ver porcos e estude tudo sem perder a humanidade. Nao quero que vc me encontre novamente num fusca e fale aquilo dobre as veias e os espermatozoides. Que coisa feia, dona mah...rsrsrs... Mas que bom. Tenho muuuuuito orhulho de ser parte da sua historia.
Beijao pra vcs e seus cadaveres.

Mariana Martins. disse...

Não se assusta não Luciano. Normalíssimo! Em se tratando de filmes de terror, não sou muito expert, mas adoro um sanguinho! hehe

Eh Ailton. Tomara que vc fique por aqui, para alimentar meu bisturi.

Felipe Loiro mitido! Quem lê até pensa que a te renderei meus discursos sobre espermatozóides.
Só lembrei de você pela forma não pudica que sempre trata as coisas. Imaginei o comentário que faria quando lesse o trecho dos espermatozóides em percurso pelo ducto deferente.
hihi

Se bem que realmente pareceu outra coisa. Ai que vergonha.
Malz aí leitores!

Patty disse...

Adorei seu blog :)

Meus parabéns
pretendo cursar medicina, to com um pouco de medo rsrsrs. Mas vOu tentar!

Anônimo disse...

Ainda bem que decidi por arquitetura...

Casas, prédios, interiores, praças... Que mundo maravilhoso!!!

Alice Sophia